A apresentação abaixo tenta aproximar-se do original. Respeita a grafia, os finais de linha, e coloca os desenhos nos lugares certos. Não foi possível nestas condições garantir o alinhamento à esquerda e direita. Esta codificação precisa de navegador compatível HTML4/CSS2. Se não se satisfazer com o resultado:
- leiam o texto completo em grafia moderna.
- vejam a reprodução em .jpg:
- página 1 (634,4kB).
- página 2 (613,7kB).
- página 3 (691.8kB).
- página 4 (388,6kB).
Agradecemos ao historiador Carlos C. Cavalheiro, de Sorocaba, pela contribuição da reprodução digital. Original pertencente ao historiador Adolfo Frioli. Carlos C. Cavalheiro
A capoeira
KOSMOS, Revista Artística, Científica e Literária, rua da Assembléia, n. 62, Rio de Janeiro. Ano III, 1906, n. 3, Março. Mensal, 2R$000, 25cm.
TYPOS E UNIFORMES DOS ANTIGOS NAGOAS E GUAYAMÚS SENDO OS PRINCIPAES DISTINCTIVOS DOS PRIMEIROS CINTA COM CORES BRANCA SOBRE A ENCARNADA E CHAPÉO DE ABA BATIDA PARA A FRENTE E DOS SEGUNDOS COM CORES ENCARNADAS SOBRE A BRANCA E CHAPÉO DE ABA ELEVADA NA FRENTE.
Nâo te conto nada seu compadre! o samba esteve cuerê-réca. No fim que houve uma choramella de escacha. O Cara Queimada estava de sorte com a Quinota quando o marchante chegou. Ih! seu camarada! Foi um estrompicio!
O Marchante era sarado, foi logo encaroçando a joça. Eu tive que entrar com o meu jogo, sim, tu sabes, que não vou nisso, e ali eu estava separado, não havia cara que me levasse vantagem. Quando a coisa estava preta eu fui ver como era p’ra contar como foi.
Das cinco grandes lutas populares: a savata francesa, o jiu-jitsu japonês, o box inglês, o pau português e a nossa capoeira, temíveis pelo que possuem de acrobacia intuitiva de elastério e de agilidade em seus recursos e avanços táticos e em seus golpes destros é, sem dúvida, a última, ainda desconhecida fora do Brasil, mesmo na América, a melhor a mais terrível como recurso individual de defesa certa ou de ataque impune.
Nas outras (com bem limitada exceção de apenas alguns golpes detentivos ou de tolhimento no Jiu-jitsu e a limitadíssima exceção do célebre círculo defensivo descrito pelo movimento giratório contínuo do pau no jogo português) o valor está no ataque; na capoeira porém, dá-se o contrário: o seu mérito básico é a defesa; ela é por excelência e na essência defensiva.
O que a sabe e a executa em uma emergência qualquer, pode, se desejar tratar com magnanimidade o adversário que desconheça o jogo, poupa-o da mais insignificante contusão, sem que se deixe atingir, entretanto por um só golpe.
Dois grandes capoeiras, igualmente exímios, igualmente ágeis com conhecimentos exactos, perfeitos e totais do jogo, jamais se ferirão, a não ser insignificante e levemente, o que bem indica o grande valor defensivo que possue essa estratégia popular e que a coloca acima de todas as congêneres de qualquer outra nacionalidade.
Embora, porém, seja o seu fim primordial a defesa, ela dispõe contudo de golpes de ataque para o caso em que o contendor conheça e saiba utilizar mais ou menos os segredos da luta, cabendo a vitória, em tal circunstância, ao mais destro, como, com o mais meditado, profundo e louvavel acerto, concluiria, em seu relatório, qualquer uma das nossas commissões officiais, pelo governo nomeada para o estudo dos mais complexos problemas.
A PENEIRAÇÃO
Com pouco vi um cabra peneirando na minha frente, dansei de velho, o typo era bom! sambou e entrou no caterêté commigo…
Porque, quando, onde e como nasceu a capoeira?
A COCADA
Fiz duas chamadas nos materiaes rodantes, de uma palma, sempre com os mirones grelados no mecco, o cabra não leu… fiz uma figuração por cima para o bruto fugir com o carão, e grampeei o individuo. Chamei o cabra na xinga, levei a caveira de lado, e fui buscar o machinismo mastigante do poeta.
O cabra engolio a lingua, damnou-se, não perdeu a scisma, ganhou tento e compareceu de novo… Não fiz questão do preço da banha…
Na transição, provavelmente, do reinado português para o primeiro império livre, pela necessidade do independente, fisicamente fraco, de se defender ou agredir o ex-possessor robusto, nos distúrbios, então freqüentes, em tabernas e matulas, por atritos constantes de nacionalidades, tendo a sua gênese em dois pontos diversos: ao norte em Pernambuco, nos primeiros faquistas contra o marinheiro, como, em represália à autonomasia de cabritos, apelidavam os cafagestes o ex-possessor, apelido, aliás, honroso, e, ao sul, aqui no Rio, nos primeiros capoeiras propriamente ditos (porque a capoeira, a legítima é por excellencia carioca) contra o pê-de-chumbo, como igualmente, na época, também apelidavam os independentes os individuos, de baixa classe, da nacionalidade que nós colonisara.
Ela surgia, como a arma original e precisa imposta pelo momento popular e pela disparidade como já dissemos, das condições físicas dos contendores.
Creou-a o espírito inventivo do mestiço, porque a capoeira não é portuguesa nem é negra, é mulata, é cafusa e é mameluca, isto é — é cruzada, é mestiça, tendo-lhe o mestiço anexado, por princípios atávicos e com adatação intelligente, a navalha dos fadistas da mouraria lisboeta, alguns movimentos sambados e simiescos do africano e, sobretudo, a agilidade, a levipedez felina e pasmosa do índio nos saltos rápidos leves e imprevistos para um lado e outro, para vante e, surpreendentemente, como um tigrino real, para trás, dando sempre a frente ao inimigo.
Durante o segundo império, a capoeira chegou ao auge, foi verdadeiramente, aquella época, a do seu pleno domínio e máximo desenvolvimento. O capoeira, então, creou o calão, a gíria, o argot técnico e nelle emoldurou o jogo.
O CALÇO OU A RASTEIRA
Cahi no baniano rente a poeira, e isquei-lhe um rabo-de-raia que o marreco voôu na alegria do tombo, indo amarrotar a tampa do juizo n’uma canastra, e ahi gritei: – Entra negrada! O turuna enfeitou-se outra vez… Oh! cabra cutuba!
Foram formados os partidos aguerridos, as maltas como eram chamadas: Conceição da Marinha, Moura, Lapa, Carpinteiros de S. José, Gloria, etc.
Esta última, na sua época aurea, a mais terrível, teve foros de verdadeira instituição política. Célebre parlamentar, hoje falecido, chamava-a mesmo a flor da minha gente, e nela tinha, sob a sua chefia, um terrível exército eleitoral.
Depois, todas essas maltas decaíram ou, antes, se fundiram em duas grandes legiões: Nagôas e Guayamús, ou simplesmente Guayas como, por entenderem ser eufonicamente mais belo, se chamavam, às vezes, os próprios representantes desta segunda falange.
Foi enorme o número de notabilidades capoeiras e nos annais dessa luta nacional ainda perduram as autonomasias famigeradas dos Bocca Negra, Bocca Queimada, Cá-te-Espero, Trinca-Espinhas, Carrapeta, Ferro, Treme-Terra, Cabelleira, Parafuso e muitos outros.
Quando chefe de polícia do governo provisório, em 1890, Sampaio Ferraz, deu caça tenaz e de morte às maltas, conseguindo destroçal-as, pela eliminação dos chefes e dos immediatos de mais ascendência.
Hoje a capoeira é usada com caráter menos proficional e sem arregimentação séria e disciplinada como outr’ora, quando a organização e a manutenção das maltas obedeciam às disciplinas de uma regulamentação perfeita e um verdadeiro quadro de classe, desde as chefias e sub-chefias até os carrapetas que eram os mais novos, os aprendizes, alguns de, apenas, 12 e 13 anos de idade, e já temíveis, tendo toda a malta os seus deveres e funções perfeitamente codificados.
Os capoeiras modernos não levam já a esses extremos o amor a arte; são mais, a bem dizer, mashorqueiros navalhistas, faquistas enfim, estrilhadeiros avulsos, que propria, exclusiva, proficional e arregimentamente capoeiras. Sabem, uns mais, outros menos, o jogo, mas não fazem dele verdadeiramente uma arte, uma profissão, uma instituição.
[princípios]
A alma do capoeira é o olhar; uma esgrima sutil, ágil, firme, attenta em que a retina é o florete flexível, penetrante, indo quasi devassar a intenção ainda occulta, o desejo, apenas, pensado, voltada sempre para o adversário, apanhando-lhe todos os movimentos, surprehendendo-lhe os mais insignificantes ameaços, para desviál-os, em tempo, com a destreza defensiva dos braços em rebates lépidos ou evitál-os com os desvios laterais e os recuos saltados de corpo, leve, sobre ponta de pés, até falcultar e perceber a aberta e entrar, para ver como é e para contar como foi, segundo o calão proprio.
A LAMPARINA
Grimpei, perdi a estribeira, cocei-me, dei de mão na barbeira e… ia sapecar-lhe um rabo de gallo, quando o cabra cascou-me uma lamparina que eu vi vermelho!
A capoeira não inutilisa unicamente o adversario pelos seus golpes; inutilisa-o também, e pior, pelo ridiculo.
O capoeira não luta em silêncio: luta usando sempre o seu calão que troça, achincalha, exaspera, ridicularisa o contendor. A gíria é chula, a frase é canalha.
Além disso a cada golpe o adversário cai nas mais grotescas, nas mais cômicas, nas mais enxovalhadoras posições.
Um vencido capoeira em lugar público, nunca pode sahir dignamente vencido porque a sua derrota provoca sempre a gargalhada.
Na cabeçada, por exemplo, a que o capoeira chama acanalhadamete – levar a torre do pensamento ao apparelho mastigante do poeta, o adversário é apanhado, com a cabeça, n’um golpe brusco, pelo baixo queixo, por sob a barba e com impulso pasmoso que é o segredo do capoeira e é a propriedade do cauthchout, é elevado ao espaço, por mais robusto e pesado que seja, na figura grotesca de um batrachio, vindo apastelar-se de ventre no solo ou cambalhotando para trás de pernas ridiculamente ao ar.
É uma arma terrível!
Em falta de melhores detalhes as pequenas figuras caricaturais intercaladas no texto, e que, juntamente com as legendas são da autoria de Calixto Cordeiro, o conhecido caricaturista, indicam alguns dos golpes de defesa e ataque mais usuais e dão ideia do calão técnico.
METER O ANDANTE
Ahi não conversei, grudei na parede, escorei o tronco, e meti-lhe o andante na caixa de comida. O dreco bispando que eu não era pecco, chamou na canella que si bem corre, está muito longe…
Eu voltei p’ro samba garganteando: “Meu Deus que noite sonorosa”