Joaquim Maria Machado de Assis, escritor brasileiro nascido no Rio em 1839, falecido em 1908 (mais em qualquer manual de literatura ou dicionário cultural).
[1885, 14 março]
Trago aqui no bolso um remédio contra os capoeiras. Nem tenho dúvida em dizer
que é muito superior ao célebre Xarope do Bosque, que fez curas admiráveis e até
milagrosas, até princípios de 1856, decaindo em seguida, como todas as coisas
deste mundo. A minha droga pode dizer-se que tem em si o sinal da imortalidade.
Agora, principalmente, que a guarda urbana foi dissolvida, entregando ontem os
rifles, receiam alguns que haja uma explosão de capoeiragem (só para os moer),
enquanto que outros crêem que a substituição da guarda é bastante para fazer
recuar os maus e tranqüilizar os bons. Hão de perdoar-me: eu estou antes com o
receio do que com a esperança, não tanto porque acredite na explosão referida,
como porque desejo vender a minha droga. Pode ser que haja nesta confissão uma
ou duas gramas de cinismo; mas o cinismo, que é a sinceridade dos patifes, pode
contaminar uma consciência reta, pura e elevada, do mesmo modo que o bicho pode
roer os mais sublimes livros do mundo.
Vamos, porém, à droga, e comecemos por dizer que estou em desacordo com todos
os meus contemporâneos, relativo ao motivo que leva o capoeira a plantar facadas
nas nossas barrigas. Diz-se que é o gosto de fazer mal, de mostrar agilidade e valor,
opinião unânime e respeitada como dogma. Ninguém vê que é simplesmente absurda.
Com efeito, não duvido que um ou outro, excepcionalmente, nutra essa perversão de
entranhas; mas a natureza humana não comporta a extensão de tais sentimentos. Não
é crível que tamanho número de pessoas se divirtam em rasgar o ventre alheio, só
para fazer alguma coisa. Não se trata de vivissecção, em que um certo abuso, por
maior que seja, é sempre científico, e com o qual, só padece cachorro, que não é gente,
como se sabe. Mas como admitir tal coisa com o homem e fora do gabinete?
Bastou-me fazer essa reflexão, para descobrir a causa das facadas anónimas e
adventícias, e logo o medicamento apropriado. Veja o leitor se não concorda comigo.
Capoeira é homem. Um dos característicos do homem é viver com o seu tempo. Ora,
o nosso tempo (nosso e do capoeira) padece de uma coisa que poderemos chamar
— erotismo de publicidade. Uns poderão crer que é achaque, outros que é uma
recrudescência de energia, porque o sentimento é natural. Seja o que for, o fato
existe, e basta andar na aldeia sem ver as casas, para reconhecer que nunca esta
espécie de afeição chegou ao grau em que a vemos.
Sou justo. Há casos em que acho a coisa natural. Na verdade, se eu completando hoje
cinqüenta anos, janto com a família e dois ou três amigos, por que não farei
participante do meu contentamento este respeitável público? embarco, desembarco,
dou ou recebo um mimo, nasce-me um porco com duas cabeças, qualquer caso desses
pode muito bem figurar em letra redonda, que dá vida a coisas muito menos
interessantes. E, depois, o nome da gente, em letra redonda, tem outra graça, que não
em letra manuscrita; sai mais bonito, mais nítido, mete-se pelos olhos dentro, sem
contar que as pessoas que hão de ler, compram as folhas, e a gente fica notório sem
despender nada. Não nos envergonhamos de viver na rua; é muito mais fresco.
Aqui tocamos o ponto essencial. O capoeira está nesta matéria como Crébillon em
matéria de teatro. Perguntou-se a este, pôr que compunha peças de fazer arrepiar os
cabelos; ele respondeu que, como Racine tomava o céu para si e Corneille a terra, não lhe
restava mais que o inferno em que se meteu. O mesmo acontece com o capoeira. Não pode
distribuir mimos espirituais, o drogas infalíveis, todos os porcos nascem-lhe com uma
só cabeça, nenhum meio de ocupar os outros com a sua preciosa pessoa. Recorre à
navalha, espalha facadas, certo de que os jornais darão notícias das suas façanhas e
divulgação os nomes de alguns.
Já o leitor adivinhou o meu medicamento. Não se pode falar com gente esperta; mal se
acaba de dizer uma coisa, conclui logo a coisa restante. Sim, senhor, adivinhou, é isso
mesmo: não publicar mais nada, trancar a imprensa às valentias da capoeiragem. Uma
vez que se não dê mais notícias, eles recolhem-se às tendas, aborrecidos de ver que a
crítica não anima os operosos.
Logo depois a autoridade, tendo à não algumas associações, becos e suspensórios ainda
sem título, entra pelas tendas e oferece aos nossos Aquiles uma compensação de
publicidade. Vitória completa: eles aceitam o derivativo, que os traz ao céu de Racine e
à terra de Corneille, enquanto as navalhas, restituídas aos barbeiros, passarão a
escanhoar os queixos da gente pacífica. Ex fumo dare lucem.
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