Depuis 1996 • Association de capoeira Angola

Aluísio Azevedo — Extraits de O Cortiço (1890)

Extraits choisis du roman naturaliste O Cortiço (1890) d'Aluísio Azevedo : présentation de l'auteur, résumé du roman et longues scènes décrivant des brigas (bagarres) et batailles entre groupes de capoeiristas dans un cortiço de Rio de Janeiro.

Aluísio Azevedo : O Cortiço : Primeira edição 1890

Aluisio Azevedo nasceu em S. Luis do Maranhão em 1857. Estudou no Rio aos 20 anos, de 1876 a 1878. Iniciou a carreira literária em S. Luis e foi morar no Rio a partir de 1881. Publicou grande quandidade de romances, O Cortiço em 1890 aos 33 anos e abandonou a literatura em 1895. Ingressou por concurso a carreira diplomática. Faleceu em 1913 com 56 anos.

Se fala que pesquisou em cortiços, até alugando quarto num deles, para documentar seu romance. Entretanto, é encenado alguns anos antes da publicação, num período anterior à abolição da escravidão em 1888.

Ver crítica em ORTIZ, Renato, Cultura brasileira e Identidade nacional, p.39.

esquema do romance

O romance tem três vertentes : a estória do dono da estalagem, Romão – e da sua fortuna comparada à da do vizinho Miranda; a da moça Pombinha e de sua iniciação sexual pela prostituta Leonie; e da das brigas de capoeira, ao redor do mestiço Firmo. Os trechos que selecionamos são aqueles últimos. O livro não é difícil de achar, inclusive está na Livraria Virtual no internet, e transcrevemos como referência para os exclusivos estudantes de capoeira.

E’ de notar que os temas selecionados não incluem a religião, apesar desta ter sido um motivo de debate político (com a maçonaria e a questão religiosa, 1874) e de descrição folclórica (que ia ser grande assunto de João do Rio vinte anos mas tarde, As Religiões do Rio - 1906). Seguidor do naturalismo do Francês Zola, provavelmente compartilha da concepção deste e dos outros chamados filántropos que nada de “elevado” podia surgir das classes baixas, nas condições materiais em que viviam. De outra parte, as religiões africanas tinham predileção pela “roça” suburbana. Estavam assim fora do campo da estalagem. No romance, a personagem da Bruxa tem nada de religioso apesar do apelido.

Quem não tiver tempo pode ir direitamente para:

  • Briga entre um capoeira e um português jogador de pau.
  • O ataque da malta.

1

João Romão foi, dos treze aos vinte e cinco anos, empregado de um vendeiro que enriqueceu entre as quatro paredes de uma suja e obscura taverna nos refolhos do bairro do Botafogo; e tanto economizou do pouco que ganhara nessa dúzia de anos que, ao retirar-se o patrão para a terra, lhe deixou, em pagamento de ordenados vencidos, nem só a venda com o que estava dentro como ainda um conto e quinhentos em dinheiro.

Proprietário e estabelecido por sua conta, o rapaz atirou-se à labutação ainda com mais ardor, possuindo-se de tal delírio de enriquecer que afrontava resignado as mais duras privações. Dormia sobre o balcão da própria venda, em cima de uma esteira, fazendo travesseiro de um saco de estopa cheio de palha. A comida arranjava-lhe, mediante quatrocentos réis por dia, uma quitandeira sua vizinha, a Bertoleza, crioula trintona, escrava de um velho cego residente em Juiz de Fora e amigada com um português que tinha uma carroça de mão e fazia fretes na cidade. Bertoleza também trabalhava forte; a sua quitanda era a mais bem-afreguesada do bairro. De manhã vendia angu, e à noite, peixe frito e iscas de fígado; pagava de jornal seu dono vinte mil-réis por mês, e, apesar disso, tinha de parte quase que o necessário para a alforria. Um dia, porém, o seu homem, depois de correr meia légua, puxando um carga superior às suas forças, caiu morto na rua, ao lado da carroça, estrompado como uma besta.

João Romão mostrou grande interesse por essa desgraça, fez-se até participante direto dos sofrimentos da vizinha, e com tamanho empenho a lamentou que a boa mulher o escolheu para confidente das suas desventuras. Abriu-se com ele, contou-lhe a sua vida de amofinações e dificuldades. “Seu senhor comia-lhe a pele do corpo! Não era brinquedo para uma pobre mulher ter de escarrar pr’ ali, todos os meses vinte mil-réis em dinheiro!” E segredou-lhe então o que tinha juntado para a sua liberdade e acabou pedindo a vendeiro que lhe guardasse as economias, porque já de certa vez fora roubada por gatunos que lhe entraram na quitanda pelos fundos.

Daí em diante, João Romão tornou-se o caixa, o procurador e o conselheiro da crioula. No fim de pouco tempo era ele quem tomava conta de tudo que ela produzia, e era também quem punha e dispunha dos seus pecúlios e quem se encarregava de remeter ao senhor os vinte mil-réis mensais. Abriu-lhe logo uma conta corrente, e a quitandeira, quando precisava de dinheiro para qualquer coisa, dava um pulo até à venda e recebia-o das mãos do vendeiro, de “Seu João”, como ela dizia. Seu João debitava metodicamente essas pequenas quantias num caderninho, em cuja capa de papel pardo lia-se, mal-escrito e em letras cortadas de jornal: “Ativo e passivo de Bertoleza”.

E por tal forma foi o taverneiro ganhando confiança no espírito da mulher que essa afinal nada mais resolvia só por si, e aceitava dele, cegamente, todo e qualquer arbítrio.

(…)

10

(…)
A noite chegou muito bonita, com um belo luar de lua cheia, que começou ainda com o crepúsculo; e o samba rompeu mais forte e mais cedo que de costume, incitado pela grande animação que havia em casa do Miranda.

Foi um forrobodó valente. A Rita Baiana essa noite estava de veia para a coisa; estava inspirada! divina! Nunca dançara com tanta graça e tamanha lubricidade!

Também cantou. E cada verso que vinha da sua boca de mulata era um arrulhar choroso de pomba no cio. E o Firmo, bêbedo de volúpia, enroscava-se todo ao violão; e o violão e ele gemiam com o mesmo gosto, grunhindo, ganindo, miando, com todas as vozes de bichos sensuais, num desespero de luxúria que penetrava até o tutano como línguas finíssimas de cobra.

Jerônimo não pôde conter-se: no momento em que a baiana, ofegante de cansaço, caiu exausta, assentando-se ao lado dele, o português segredou-lhe com a voz estrangulada de paixão: –Meu bem! se você quiser estar comigo, dou uma perna ao demo!

O mulato não ouviu, mas notou o cochicho e ficou, de má cara, a rondar disfarçadamente o rival.

O canto e a dança continuavam todavia, sem afrouxar. Entrou a das Dores. Nenen, mais uma amiga sua, que fora passar o dia com ela, rodavam de mãos nas cadeiras, rebolando em meio de uma volta de palmas cadenciadas, no acompanhamento do ritmo requebrado da música.

Quando o marido da Piedade disse um segundo cochicho à Rita, Firmo precisou empregar grande esforço para não ir logo às do cabol.

Mas, lá pelo meio do pagode, a baiana caíra na imprudência de derrear-se toda sobre o português e soprar-lhe um segredo, requebrando os olhos. Firmo, de um salto, aprumou-se então defronte dele, medindo-o de alto a baixo com um olhar provocador e atrevido. Jerônimo, também posto de pé, respondeu altivo com um gesto igual. Os instrumentos calaram-se logo. Fez-se um profundo silêncio. Ninguém se mexeu do lugar em que estava. E, no meio da grande roda, iluminados amplamente pelo capitoso luar de abril, os dois homens, perfilados defronte um do outro, olhavam-se em desafio.

Jerônimo era alto, espadaúdo, construção de touro, pescoço de Hércules, punho de quebrar um coco com um murro: era a força tranqüila, o pulso de chumbo. O outro, franzino, um palmo mais baixo que o português, pernas e braços secos, agilidade de maracajá: era a força nervosa; era o arrebatamento que tudo desbarata no sobressalto do primeiro instante. Um, sólido e resistente; o outro, ligeiro e destemido, mas ambos corajosos.

–Senta! Senta!
–Nada de rolo!
–Segue a dança–gritaram em volta.

Piedade erguera-se para arredar o seu homem dali.

O cavouqueiro afastou-a com um empurrão, sem tirar a vista de cima do mulato.

–Deixa-me ver o que quer de mim este cabra!…–rosnou ele.
–Dar-te um banho de fumaça, galego ordinário!–respondeu Firmo, frente a frente; agora avançando e recuando, sempre com um dos pés no ar, e bamboleando todo o corpo e meneando os braços, como preparado para agarrá-lo.

Jerônimo, esbravecido pelo insulto, cresceu para o adversário com um soco armado; o cabra, porém, deixou-se cair de costas, rapidamente, firmando-se nas mãos o corpo suspenso, a perna direita levantada; e o soco passou por cima, varando o espaço, enquanto o português apanhava no ventre um pontapé inesperado.

–Canalha!–berrou possesso; e ia precipitar-se em cheio sobre o mulato quando uma cabeçada o atirou no chão.

–Levanta-te, que não dou em defuntos!–exclamou o Firmo, de pé, repetindo a sua dança de todo o corpo.

O outro erguera-se logo e, mal se tinha equilibrado, já uma rasteira o tombava para a direita, enquanto da esquerda ele recebia uma tapona na orelha. Furioso, desferiu novo soco, mas o capoeira deu para trás um salto de gato e o português sentiu um pontapé nos queixos.

Espirrou-lhe sangue da boca e das ventas. Então fez-se um clamor medonho. As mulheres quiseram meter-se de permeio, porém o cabra as emborcava com rasteiras rápidas, cujo movimento de pernas apenas se percebia. Um horrível sarilho se formava. João Romão fechou às pressas as portas da venda e trancou o portão da estalagem, correndo depois para o lugar da briga. O Bruno, os mascates, os trabalhadores da pedreira e todos os outros que tentaram segurar o mulato tinham rolado em torno dele, formando-se uma roda limpa, no meio da qual o terrível capoeira, fora de si, doido, reinava, saltando a um tempo para todos os lados, sem consentir que ninguém se aproximasse. O terror arrancava gritos agudos. Estavam já todos assustados, menos a Rita que, a certa distancia, via, de braços cruzados, aqueles dois homens a se baterem por causa dela; um ligeiro sorriso encrespava-lhe os lábios. A lua escondera-se: mudara o tempo; o céu, de limpo que estava, fez-se cor de lousa; sentia-se um vento úmido de chuva. Piedade berrava, reclamando polícia; tinha levado um troca-queixos do marido, porque insistia em tirá-lo da luta. As janelas do Miranda acumulavam-se de gente. Ouviam-se apitos, soprados com desespero.

Nisto ecoou na estalagem um bramido de fera enraivecida: Firmo acabava de receber, sem esperar, uma formidável cacetada na cabeça. É que Jerônimo havia corrido à casa e armara-se com o seu varapau minhoto. E então o mulato, com o rosto banhado em sangue, refilando as presas e espumando de cólera, erguera o braço direito, onde se viu cintilar a lâmina de uma navalha.

Fez-se uma debandada em volta dos dois adversários, estrepitosa, cheia de pavor. Mulheres e homens atropelavam-se, caindo uns por cima dos outros. Albino perdera os sentidos; Piedade clamava, estarrecida e em soluços, que lhe iam matar o homem; a das Dores soltava censuras e maldições contra aquela estupidez de se destriparem por causa de entrepernas de mulher; a Machona, armada com um ferro de engomar, jurava abrir as fuças a quem lhe desse um segundo coice como acabava ela de receber um nas ancas; Augusta enfiara pela porta do fundo da estalagem para atravessar o capinzal e ir à rua ver se descobria o marido, que talvez estivesse de serviço no quarteirão. Por esse lado acudiram curiosos, e o pátio enchia-se de gente de fora. Dona Isabel e Pombinha, de volta da casa de Léonie, tiveram dificuldades em chegar ao número 15, onde, mal entraram, fecharam-se por dentro, praguejando a velha contra a desordem e lamentando-se da sorte que as lançou naquele inferno. Entanto, no meio de uma nova roda, encintada pelo povo, o português e o brasileiro batiam-se.

Agora a luta era regular: havia igualdade de partidos, porque o cavouqueiro jogava o pau admiravelmente; jogava-o tão bem quanto o outro jogava a sua capoeiragem. Embalde Firmo tentava alcançá-lo; Jerônimo, sopesando ao meio a grossa vara na mão direita, girava a com tal perícia e ligeireza em tomo do corpo que parecia embastilhado por uma teia impenetrável e sibilante. Não se lhe via a arma, só se ouvia um zunido do ar simultaneamente cortado em todas as direções.

E, ao mesmo tempo que se defendia, atacava. O brasileiro tinha já recebido pauladas na testa, no pescoço, nos ombros, nos braços, no peito, nos rins e nas pernas. O sangue inundava-o inteiro; ele rugia e arfava, iroso e cansado, investindo ora com os pés, ora com a cabeça, e livrando-se daqui, livrando-se dali, aos pulos e às cambalhotas.

A vitória pendia para o lado do português. Os espectadores aclamavam-no já com entusiasmo; mas, de súbito, o capoeira mergulhou, num relance, até às canelas do adversário e surgiu-lhe rente dos pés, grudado nele, rasgando-lhe o ventre com uma navalhada.

Jerônimo soltou um mugido e caiu de borco, segurando os intestinos.

–Matou! Matou! Matou!–exclamaram todos com assombro.

Os apitos esfuziaram mais assanhados.

Firmo varou pelos fundos do cortiço e desapareceu no capinzal.

–Pega! Pega!
–Ai, o meu rico homem!–ululou Piedade, atirando-se de joelhos sobre o corpo ensangüentado do marido. Rita viera também de carreira lançar-se ao chão junto dele, para lhe afagar as barbas e os cabelos.

–É preciso o doutor!–suplicou aquela, olhando para os lados à procura de uma alma caridosa que lhe valesse.

Mas nisto um estardalhaço de formidáveis pranchadas estrugiu no portão da estalagem. O portão abalou com estrondo e gemeu.

–Abre! Abre!–reclamavam de fora.

João Romão atravessou o pátio, como um general em perigo, gritando a todos:

–Não entra a polícia! Não deixa entrar! Agüenta! Agüenta!

–Não entra! Não entra!–repercutiu a multidão em coro.

E todo o cortiço ferveu que nem uma panela ao fogo.

–Agüenta! Agüenta!

Jerônimo foi carregado para o quarto, a gemer, nos braços da mulher e da mulata. –Agüenta! Agüenta!

De cada casulo espipavam homens armados de pau, achas de lenha, varais de ferro. Um empenho coletivo os agitava agora, a todos, numa solidariedade briosa, como se ficassem desonrados para sempre se a polícia entrasse ali pela primeira vez. Enquanto se tratava de uma simples luta entre dois rivais, estava direito! “Jogassem lá as cristas, que o mais homem ficaria com a mulher” mas agora tratava-se de defender a estalagem, a comuna, onde cada um tinha a zelar por alguém ou alguma coisa querida.

–Não entra! Não entra!

E berros atroadores respondiam às pranchadas, que lá fora se repetiam ferozes.

A polícia era o grande terror daquela gente, porque, sempre que penetravam em qualquer estalagem, havia grande estropício; à capa del evitar e punir o jogo e a bebedeira, os urbanos invadiam os quartos, quebravam o que lá estava, punham tudo em polvorosa. Era uma questão de ódio velho.

E, enquanto os homens guardavam a entrada do capinzal e sustentavam de costas o portão da frente, as mulheres, em desordem, rolavam as tinas, arrancavam jiraus, arrastavam carroças, restos de colchões e sacos de cal, formando às pressas uma barricada.

As pranchadas multiplicavam-se. O portão rangia, estalava, começava a abrir- se; ia ceder. Mas a barricada estava feita e todos entrincheirados atrás dela. Os que entraram de fora por curiosidade não puderam sair e viam-se metidos no surumbamba. As cercas das hortas voaram. A Machona terrível fungara as saias e empunhava na mão o seu ferro de engomar. A das Dores, que ninguém dava nada por ela, era uma das mais duras e que parecia mais empenhada na defesa.

Afinal o portão lascou; um grande rombo abriu-se logo; caíram tábuas; e os quatro primeiros urbanos que se precipitaram dentro foram recebidos a pedradas e garrafas vazias. Seguiram-se outros. Havia uns vinte. Um saco de cal, despejado sobre eles, desnorteou-os.

Principiou então o salseiro grosso. Os sabres não podiam alcançar ninguém por entre a trincheira; ao passo que os projetis, arremessados lá de dentro, desbaratavam o inimigo. Já o sargento tinha a cabeça partida e duas praças abandonavam o campo, à falta de ar.

Era impossível invadir aquele baluarte com tão poucos elementos, mas a polícia teimava, não mais por obrigação que por necessidade pessoal de desforço. Semelhante resistência os humilhava. Se tivessem espingardas fariam fogo. O único deles que conseguiu trepar à barricada rolou de lá abaixo sob uma carga de pau que teve de ser carregado para a rua pelos companheiros. O Bruno, todo sujo de sangue, estava agora armado de um refle, e o Porfiro, mestre na capoeiragem, tinha na cabeça uma barretina de urbano.

–Fora os morcegos!
–Fora! Fora!

E, a cada exclamação, tome pedra! tome lenha! tome cal! tome fundo de garrafa!

Os apitos estridulavam mais e mais fortes.

Nessa ocasião, porém, Nenen gritou, correndo na direção da barricada.

–Acudam aqui! Acudam aqui! Há fogo no número 12. Está saindo fumaça!

–Fogo!

A esse grito um panico geral apoderou-se dos moradores do cortiço. Um incêndio lamberia aquelas cem casinhas enquanto o diabo esfrega um olho!

Fez-se logo medonha confusão. Cada qual pensou em salvar o que era seu. E os policiais, aproveitando o terror dos adversários, avançaram com ímpeto, levando na frente o que encontraram e penetrando enfim no infernal reduto, a dar espadeiradas para a direita e para a esquerda, como quem destroça uma boiada. A multidão atropelava-se, desembestando num alarido. Uns fugiam à prisão; outros cuidavam em defender a casa.

Mas as praças, loucas de cólera, metiam dentro as portas e iam invadindo e quebrando tudo, sequiosos de vingança.

Nisto roncou no espaço a trovoada. O vento do norte zuniu mais estridente e um grande pé-d’água desabou cerrado.

11

A Bruxa, por influência sugestiva da loucura de Marciana, piorou do juízo e tentou incendiar o cortiço.

Enquanto os companheiros o defendiam a unhas e dentes, ela, com todo o disfarce, carregava palha e sarrafos para o número 12 e preparava uma fogueira.

Felizmente acudiram a tempo; mas as consequências foram do mesmo modo desastrosas; porque muitas outras casinhas, escapando como aquela ao fogo, não escaparam à devastação da polícia. Algumas ficaram completamente assoladas. E a coisa seria ainda mais feia se não viera o providencial aguaceiro apagar também o outro incêndio ainda pior, que, de parte a parte, lavrara nos animos. A polícia retirou-se sem levar nenhum preso. “A ir um, iriam todos à estação! Deus te livre! Demais, para quê? o que ela queria fazer fez! estava satisfeita!”

Apesar do empenho do João Romão, ninguém conseguiu descobrir o autor da sinistra tentativa, e só muito tarde cada qual cuidou de pregar olho, depois de reacomodar, entre plangentes lamentações, o que se salvou do destroço. O tempo levantou de novo à meianoite. Ao romper da aurora já muita gente estava de pé e o vendeiro passava uma revista minuciosa no pátio, avaliando e carpindo, inconsolável e furioso, o seu prejuízo. De vez em quando soltava uma praga. Além do que escangalharam os urbanos dentro das casas, havia muita tina partida, muito jirau quebrado, lampiões em fanicos, hortas e cercas arrasadas; o portão da frente e a tabuleta foram reduzidos a lenha. João Romão meditava, para cobrir o dano, carregar um imposto sobre os moradores da estalagem, aumentando lhes o aluguel dos cômodos e o preço dos gêneros. Viu-se numa dobadoura durante o dia inteiro; desde pela manhã dera logo as providências para que tudo voltasse aos seus eixos o mais depressa possível: mandou buscar novas tinas; fabricar novos jiraus e consertar os quebrados; pôs gente a remendar o portão e a tabuleta. Ao meio-dia teve de comparecer à presença do subdelegado na secretaria da polícia. Foi mesmo em mangas de camisa e sem meias; muitos do cortiço o acompanharam, quer por espírito de camaradagem, quer por simples curiosidade.

Uma verdadeira patuscada esse passeio à cidade! Parecia uma romaria; algumas mulheres levaram os seus pequenitos ao colo; um magote de italianos ia à frente, macarroneando, a fumar cachimbo; alguns cantavam. Ninguem tomou bonde; e por toda a viagem discutiram e altercaram em grande troça, comentando com gargalhadas e chalaças gordas o que iam encontrando, a chamar a atenção das ruas por onde desfilava a ruidosa farandola.

A sala da polícia encheu-se.

O interrogatório, exclusivamente dirigido a João Romão, era respondido por todos a um só tempo, a despeito dos protestos e das ameaças da autoridade, que se viu tonta.

(…)

13

A proporção que alguns locatários abandonavam a estalagem, muitos pretendentes surgiram disputando os cômodos desalugados. Delporto e Pompeo foram varridos pela febre amarela e três outros italianos estiveram em risco de vida. O número dos hóspedes crescia, os casulos subdividiam-se em cubículos do tamanho de sepulturas e as mulheres iam despejando crianças com uma regularidade de gado procriador. Uma família composta de mãe viúva e cinco filhas solteiras, das quais destas a mais velha tinha trinta anos e a mais moça quinze, veio ocupar a casa que Dona Isabel esvaziou poucos dias depois do casamento de Pombinha.

Agora, na mesma rua, germinava outro cortiço ali perto, o Cabeça de Gato. Figura va como seu dono um português que também tinha venda, mas o legítimo proprietário era um abastado conselheiro, homem de gravata lavada, a quem não convinha, por decoro social, aparecer em semelhante gênero de especulações. E João Romão, estalando de raiva, viu que aquela nova república da miséria prometia ir adiante e ameaçava fazer-lhe à sua perigosa concorrência. Pôs-se logo em campo, disposto à luta, e começou a perseguir o rival por todos os modos, peitando os fiscais e guardas municipais, para que o não deixassem respirar um instante com multas e exigências vexatórias: enquanto pela sorrelfa plantava no espírito dos seus inquilinos um verdadeiro ódio de partido, que os incompatibilizava com a gente do Cabeça de Gato. Aquele que não estivesse disposto a isso ia direitinho para a rua, “que ali se não admitiam meias medidas a tal respeito! Ah! ou bem peixe ou bem carne! Nada de embrulho!” É inútil dizer que a parte contrária lançou mão igualmente de todos os meios para guerrear o inimigo, não tardando que entre os moradores das duas estalagens rebentasse uma tremenda rivalidade, dia a dia agravada por pequenas brigas e rezingas, em que as lavadeiras se destacavam sempre com questões de freguesias de roupa. No fim de pouco tempo os dois partidos estavam já perfeitamente determinados; os habitantes do Cabeça de Gato tomaram por alcunha o título do seu cortiço, e os de “São Romão”, tirando o nome do peixe que a Bertoleza mais vendia à porta da taverna, foram batizados por carapicus. Quem se desse com um carapicu não podia entreter a mais ligeira amizade com um cabeça de gato; mudar-se alguém de uma estalagem para a outra era renegar ideias e princípios e ficava apontado a dedo; denunciar a um contrário o que se passava, fosse o que fosse, dentro do círculo oposto, era cometer traição tamanha, que os companheiros puniam a pau. Um vendedor de peixe, que caiu na asneira de falar a um cabeça de gato a respeito de uma briga entre a Machona e sua filha, a das Dores, foi encontrado quase morto perto do Cemitério de São João Batista. Alexandre, esse então não cochilava com os adversários: nas suas partes policiais figurava sempre o nome de um deles pelo menos, mas entre os próprios policiais havia adeptos de um e de outro partido; o urbano que entrava na venda do João Romão tinha escrúpulo de tomar qualquer coisa ao balcão da outra venda. Em meio do pátio do Cabeça de Gato arvorara-se uma bandeira amarela, os carapicus responderam logo levantando um pavilhão vermelho. E as duas cores olhavam-se no ar como um desafio de guerra. A batalha era inevitável. Questão de tempo.

Firmo, assim que se instaurara a nova estalagem, abandonou o quarto na oficina e meteu-se lá de súcia com o Porfiro, apesar da oposição de Rita, que mais depressa o deixaria a ele do que aos seus velhos camaradas de cortiço. Daí nasceu certa ponta de discórdia entre os dois amantes; as suas entrevistas tornavam-se agora mais raras e mais difíceis. A baiana, por coisa alguma desta vida, poria os pés no Cabeça de Gato e o Firmo achava-se, como nunca, incompatibilizado com os carapicus. Para estarem juntos tinham encontros misteriosos num calojil de uma velha miserável da Rua de São João Batista que lhe cedia a casa mediante esmolas. O capoeira fazia questão de ficar no Cabeça de Gato, porque aí se sentia resguardado contra qualquer perseguição que o seu delito motivasse; de resto, Jerônimo não estava morto e, uma vez bem-curado, podia vir sobre ele com gana. No Cabeça de Gato, o Firmo conquistara rápidas simpatias e constituíra-se chefe de malta. Era querido e venerado, os companheiros tinham entusiasmo pela sua destreza e pela sua coragem; sabiam-lhe de cor a legenda rica de façanhas e vitórias. O Porfiro secundava-o sem lhe disputar a primazia, e esses dois, só por si, impunham respeito aos carapicus, entre os quais, não obstante, havia muito boa gente para o que desse e viesse.

(…)

14

Iam-se assim os dias, e assim mais de três meses se passaram depois da noite da navalhada. Firmo continuava a encontrar-se com a baiana na Rua de São João Batista, mas a mulata já não era a mesma para ele: apresentava-se fria, distraída, às vezes impertinente, puxando questão por dá cá aquela palha.

–Hum! hum! temos mouro na costal!–rosnava o capadócio com ciúmes.–
Ora queira Deus que eu me engane!

Nas entrevistas apresentava-se ela agora sempre um pouco depois da hora marca da, e sua primeira frase era para dizer que tinha pressa e não podia demorar- se.

–Estou muito apertada de serviço!–acrescentava à réplica do amante.–

Uma roupa de uma família que embarca amanhã para o Norte! Tem de ficar pronta esta noite! Já ontem fiz serão!

–Agora estás sempre apertada de serviço!…–resmungava o Firmo.

–É que é preciso puxar por ele, filho! Ponha-me eu a dormir e quero ver do que como e com que pago a casa! Não há de ser com o que levo daqui!

–Or’essa! Tens coragem de dizer que não te dou nada? E quem foi que te deu esse vestido que tens no corpo?!

–Não disse que nunca me desse nada, mas com o que você me dá não pago a casa e não ponho a panela no fogo! Também não lhe estou pedindo coisa alguma! Oh!

Azedavam-se desse modo as suas entrevistas, esfriando as poucas horas que os dois tinham para o amor. Um domingo, Firmo esperou bastante tempo e Rita não apareceu. O quarto era acanhado e sombrio, sem janelas, com um cheiro mau de bafio e umidade. Ele havia levado um embrulho de peixe frito, pão e vinho, para almoçarem juntos. Deu meio dia e Firmo esperou ainda, passeando na estreiteza da miserável alcova, como uma onça enjaulada, rosnando pragas obscenas; o sobrolho intumescido, os dentes cerrados. “Se aquela safada lhe aparecesse naquele momento, ele seria capaz de torcê-la nas mãos!”

A vista do embrulho da comida estourou-lhe a raiva. Deu um pontapé numa bacia de louça que havia no chão, perto da cama, e soltou um murro na cabeça.

–Diabo!

Depois assentou-se no leito, esperou ainda algum tempo, fungando forte, sacudindo as pernas cruzadas, e afinal saiu, atirando para dentro do quarto uma palavra porca.

Pela rua, durante o caminho, jurava que “aquela caro pagaria a mulata!” Um sôfre go desejo de castigá-la, no mesmo instante, o atraía ao cortiço de São Romão, mas não se sentiu com animo de lá ir, e contentou-se em rondar a estalagem. Não conseguiu vê-la; resolveu esperar até a noite para lhe mandar um recado. E vagou aborrecido pelo bairro, arrastando o seu desgosto por aquele domingo sem pagode.

As duas horas da tarde entrou no botequim do Garnisé, uma espelunca, perto da praia, onde ele costumava beber de súcia com o Porfiro. O amigo não estava lá. Firmo atirou-se numa cadeira, pediu um martelo de parati e acendeu um charuto, a pensar. Um mulatinho, morador no Cabeça de Gato, veio assentar-se na mesma mesa e, sem rodeios, deu-lhe a notícia de que na véspera o Jerônimo tivera alta do hospital.

Firmo acordou com um sobressalto.

–O Jerônimo?!

–Apresentou-se hoje pela manhã na estalagem.

–Como soubeste?

–Disse-me o Pataca.

–Ora aí está o que é!–exclamou o capoeira, soltando um murro na mesa.

–Que é o quê?–interrogou o outro.

–Nada! É cá comigo. Toma alguma coisa?

Veio novo copo, e Firmo resmungou no fim de uma pausa:

–É, não há dúvida! Por isso é que a perua ultimamente me anda de vento mudado!…

E um ciúme doido, um desespero feroz rebentou-lhe por dentro e cresceu logo como a sede de um ferido. “Oh! precisava vingar-se dela! e dele! O amaldiçoado resistiu à primeira, mas não lhe escaparia da segunda!”

–Veja mais um martelo de parati!–gritou para o portuguesinho da espelunca. E acrescentou, batendo com toda a força o seu petrópolis no chão: –E não passa de hoje mesmo!

Com o chapéu a ré, a gaforinha mais assanhada que de costume, os olhos vermelhos, a boca espumando pelos cantos, todo ele respirava uma febre de vingança e de ódio.

–Olha!–disse ao companheiro de mesa.–Disto, nem pio lá com os carapicus! Se abrires o bico dou-te cabo da pele! Já me conheces!

–Tenho nada que falar! Pra quê?

–Bom!

E ficaram ainda a beber.

Jerônimo, com efeito, tivera alta e tornara aquele domingo ao cortiço, pela primeira vez depois da doença. Vinha magro, pálido, desfigurado, apoiando-se a um pedaço de bambu. Crescera-lhe a barba e o cabelo, que ele não queria cortar sem ter cumprido certo juramento feito aos seus brios. A mulher fora buscá-lo ao hospital e caminhava a seu lado, igualmente abatida com a moléstia do marido e com as causas que a determinaram. Os companheiros receberam-no compungidos, tomados de uma tristeza respeitosa; um silêncio fez-se em torno do convalescente, ninguém falava senão a meia voz, a Rita Baiana tinha os olhos arrasados de água. Piedade levou o seu homem para o quarto.

–Queres tomar um caldinho?–perguntou-lhe.–Creio que ainda não estás de todo pronto…

–Estou!–contrapôs ele.–Diz o doutor que preciso é de andar, para ir chamando força às pernas. Também estive tanto tempo preso à cama! Só de uma semana pra cá é que encostei os pés no chão!

Deu alguns passos na sua pequena sala e disse depois, tornando junto da mulher:

–O que me saberia bem agora era uma xicrinha de café, mas queria-o bom como o faz a Rita… Olha! pede-lhe que o arranje.

Piedade soltou um suspiro e saiu, vagarosamente, para ir pedir o obséquio à mula ta. Aquela preferência pelo café da outra doía-lhe duro que nem uma infidelidade.

–Lá o meu homem quer do seu café e torceu nariz ao de casa… Manda pedir-lhe que lhe faça uma xícara. Pode ser?–perguntou a portuguesa à baiana.

–Não custa nada!–respondeu esta.–Com poucas está lá!

Mas não foi preciso que o levasse, porque daí a um instante Jerônimo, com o seu ar tranqüilo e passivo de quem ainda se não refez de todo depois de uma longa moléstia, surgiu-lhe à porta.

–Não vale a pena estorvar-se em lá ir… Se me dá licença, bebo o cafezinho aqui mesmo…

–Entra, seu Jerônimo.

–Aqui ele sabe melhor…

–Você pega já com partes! Olha, sua mulher anda de pé atrás comigo! E eu não quero histórias!…

Jerônimo sacudiu os ombros com desdém.

–Coitada!…– resmungou depois.–Muito boa criatura, mas…

–Cala a boca, diabo! Toma o café e deixa de maldizência! É mesmo vício de Portugal: comendo e dizendo mal! O português sorveu com delícia um gole de café. – Não digo mal, mas confesso que não encontro nela umas tantas coisas que desejava… E chupou os bigodes.

– Vocês são tudo a mesma suça! Bem tola é quem vai atrás de lábia de homem! Eu cá não quero mais saber disso… Ao outro despachei já! O cavouqueiro teve um tremor de todo o corpo. – Outro quem?! O Firmo?

Rita arrependeu-se do que dissera e gaguejou:

– E um coisa-ruim! Não quero saber mais dele!… Um traste!

– Ele ainda vem cá? – perguntou o cavouqueiro.

– Aqui? Qual! Nessa não cai! E se vier não lhe abro a porta! Ah! quando embirro com uma pessoa é que embirro mesmo!

– Isso é verdade, Rita?

– Quê? Que não quero saber mais dele? Esta que aqui está nunca mais fará vida com semelhante cábula! Juro por esta luz!

– Ele fez-lhe alguma?

– Não sei! não quero! acabou-se!

– É que então você tem outro agora…

– Que esperança! Não tenho, nem quero mais ter homem!

–Por quê, Rita?

– Ora! não paga a pena!

– E… se você encontrasse um… que a quisesse deveras… para sempre?…

– Não é com essas!…

–Pois sei de um que a quer como Deus aos seus ! …

– Pois diga-lhe que siga outro ofício!

Ela se chegou para recolher a xícara, e ele apalpou-lhe a cintura.

– Olha! Escuta! Rita fugiu com uma rabanada, e disse rápido, muito a sério:

– Deixe disso. Pode tua mulher ver!

–Vem cá!
– Logo.
– Quando?
– Logo mais.
– Onde?
– Não sei.

– Preciso muito te falar…

– Pois sim, mas aqui fica feio. – Onde nos encontramos então?

– Seicá! E, vendo que Piedade entrava, ela disfarçou, dizendo sem transição.
– Os banhos frios é que são bons para isso. Põem duro o corpo!

A outra, embesourada, atravessou em silêncio a pequena sala, foi ter com o marido e comunicou-lhe que o Zé Carlos queria falar-lhe, junto com o Pataca.

– Ah! – fez Jerônimo. – Já sei o que é. Até logo, Nhá Rita. Obrigado.

Quando quiser qualquer coisa de nós, lá estamos.

Ao sair do pátio, aqueles dois vieram ao seu encontro. O cavouqueiro levou- os para casa, onde a mulher havia posto já a mesa do almoço, e com um sinal preveniu-os de que não falassem por enquanto sobre o assunto que os trouxera ali.

Jerônimo comeu às pressas e convidou as visitas a darem um giro lá fora.

Na rua, perguntou-lhes em tom misterioso:

–Onde poderemos falar à vontade?

O Pataca lembrou a venda do Manuel Pepé, defronte do cemitério.

– Bem achado!–confirmou Zé Carlos.–Há lá bons fundos para se conversar.

E os três puseram-se a caminho, sem trocar mais palavras até a esquina.

– Então está de pé o que dissemos?…–indagou afinal aquele último.

– De pedra e cal!–respondeu o cavouqueiro.

– E o que é que se faz?

– Ainda não sei… Preciso antes de tudo saber onde o cabra é encontrado à noite.

– No Garnisé–afirmou o Pataca.

– Garnisé?

– Aquele botequim ali ao entrar da Rua da Passagem, onde está um galo à tabuleta.

– Ah! Defronte da farmácia nova…

– Justo! Ele vai lá agora todas as noites, e lá esteve ontem, que o vi, por sinal que num gole…

– Muito bêbado, hein?

– Como um gambá! Aquilo foi alguma que a Rita Baiana lhe pregou de fresco!

Tinham chegado à venda. Entraram pelos fundos e assentaram-se sobre caixas de sabão vazias, em volta de uma mesa de pinho. Pediram parati com a çúcar.

– Onde é que eles se encontravam?…–informou-se Jerônimo, afetando que fazia esta pergunta sem interesse especial.–Lá mesmo no São Romão?

– Quem? A Rita mais ele? Ora o quê! Pois se ele agora é todo Cabeça de Gato!…

– Ela ia lá?

– Duvido! Então logo aquela! Aquela é carapicu até o sabugo das unhas!

– Nem sei como ainda não romperam!–interveio Zé Carlos, que continuou a falar a respeito da mulata, enquanto Jerônimo o escutava abstrato, sem tirar os olhos de um Ponto.

O Pataca, como se acompanhasse o pensamento do cavouqueiro, disse-lhe embor cando o resto do copo:

– Talvez o melhor fosse liquidar a coisa hoje mesmo ! …

– Ainda estou muito fraco…–observou lastimoso o convalescente.

– Mas o teu pau está fone! E além disso cá estamos nós dois. Tu podes até ficar em casa, se quiseres…

– Isso é que não!–atalhou aquele.–Não dou o meu quinhão pelos dentes da boca!

– Eu cá também vou que o melhor seria pespegar-lhe hoje mesmo a sova…– declarou o outro.– Pão de um dia para outro fica duro!

– E eu estou-lhe com uma gana!…– acrescentou o Pataca.

– Pois seja hoje mesmo! – resolveu Jerônimo.–E o dinheiro lá está em casa, quarenta pra cada um! Em seguida à mela corre logo o cobre! E ao depois vai a gente tomar uma fartadela de vinho fino!

– A que horas nos juntamos? – perguntou Zé Carlos.

– Logo ao cair da noite, aqui mesmo. Está dito?

– E será feito, se Deus quiser!

O Pataca acendeu o cachimbo e os três puseram-se a cavaquear animadamente sobre o efeito que aquela sova havia de produzir; a cara que o cabra faria entre três bons cacetes. “Então é que queriam ver até onde ia a impostura na navalha! Diabo de um calhorda que, por um–vai tu, irei eu–arrancava logo pelo ferro!…”

Dois trabalhadores, em camisa-de-meia, entraram na tasca e o grupo calou-se. Jerônimo fogueou um cigarro no cachimbo do Pataca e despediu-se, relembrando aos companheiros a hora da entrevista e atirando sobre a mesa um níquel de duzentos réis.

Foi direito para o cortiço.

– Fazes mal em andar por aí com este sol!…–repreendeu Piedade, ao vê-lo entrar.

– Pois se o doutor me disse que andasse quanto pudesse…

Mas recolheu-se à casa, estirou-se na cama e ferrou logo no sono. A mulher, que o acompanhara até lá, assim que o viu dormindo, enxotou as moscas de junto dele, cobriu lhe a cara com uma cambraia que servia para os tabuleiros de roupa engomada e saiu na ponta dos pés, deixando a porta encostada.

Jantaram daí a duas horas. Jerônimo comeu com apetite, bebeu uma garrafa de vinho e a tarde passaram-na os dois de palestra, assentados à frente de casa, formando grupo com a Rita e a gente da Machona. Em torno deles a liberdade feliz do domingo punha alegrias naquela tarde. Mulheres amamentavam o filhinho ali mesmo, ao ar livre, mostrando a uberdade das tetas cheias. Havia muito riso, muito parolar de papagaios; pequenos travessavam, tão depressa rindo como chorando; os italianos faziam a ruidosa digestão dos seus jantares de festa; ouviam-se cantigas e pragas entre gargalhadas. A Augusta, que estava grávida de sete meses, passeava solenemente o seu bandulho, levando um outro filho ao colo. O Albino, instalado defronte de uma mesinha em frente à sua porta, fazia, à força de paciência, um quadro, composto de figurinhas de caixa de fósforos, recortadas a tesoura e grudadas em papelão com goma-arábica. E lá em cima numa das janelas do Miranda, João Romão, vestido de casimira clara, uma gravata à moda, já familiarizado com a roupa e com a gente fina, conversava com Zulmira que, ao lado dele, sorrindo de olhos baixos, atirava migalhas de pão para as galinhas do cortiço; ao passo que o vendeiro lançava para baixo olhares de desprezo sobre aquela gentalha sensual, que o enriquecera e que continuava a mourejar estupidamente, de sol a sol, sem outro ideal senão comer, dormir e procriar.

Ao cair da noite, Jerônimo foi, como ficara combinado, à venda do Pepé. Os outros dois já lá estavam. Infelizmente, havia mais alguém na tasca. Tomaram juntos, pelo mesmo copo, um martelo de parati e conversaram em voz surda numa conspiração sombria em que as suas barbas roçavam umas com as outras.

– Os paus onde estão?…–perguntou o cavouqueiro.

– Ali, junto às pipas…–segredou o Pataca, apontando com disfarce para uma esteira velha enrolada.–Preparei-os ainda há pouco. Não os quis muito grandes… Deste tamanho.

E abriu a mão contra a terra no lugar do peito.

– Estiveram de molho até agora…–acrescentou, piscando o olho.

– Bom!–aprovou Jerônimo, esgotando o copo com um último gole. –Agora aonde vamos nós? Parece-me ainda cedo para o Garnisé.

– Ainda!–confirmou o Pataca. – Deixemo-nos ficar por aqui mais um pouco e ao depois então seguiremos. Eu entro no botequim e vocês me esperam fora do lugar que marcamos… Se o cabra não estiver lá, volto logo a dizer-lhes, e, caso esteja, fico… chego me para ele, procuro entrar em conversa, puxo discussão e afinal desafio-o pra rua; ele cai na esparrela, e então vocês dois surgem e metem-se na dança, como quem não quer a coisa! Que acham?

– Perfeito!–aplaudiu Jerônimo, e gritou para dentro:–Olha mais um marte lo de parati!

Em seguida enterrou a mão no bolso da calça e sacou um rolo grosso de notas.

– Podem enxugar à vontade!–disse.–Aqui ainda há muito com que…

E, ordenando as notas, separou oitenta mil-réis, em cédulas de vinte.

– Isto é o do ajuste! Este é sagrado!–acrescentou, guardando-as na algibeira do lado esquerdo.

Depois separou ainda vinte mil-réis, que atirou sobre a mesa.

–Esse aí é para festejarmos a nossa vitória!

E, fazendo do resto do seu dinheiro um bolo, que ele, um pouco ébrio, apertava nos dedos, agora, claros e quase descalejados, socou-o na algibeira do lado direito explicando entre dentes que ali ficava ainda bastante para o que desse e viesse, no caso de algum contratempo.

–Bravo!–exclamou Zé Carlos.–Isto é o que se chama fazer as coisas à fidalga! Haja contar comigo pra vida e pra morte!

O Pataca entendia que podiam tomar agora um pouco de cerveja.

–Cá por mim não quero, mas bebam-na vocês–acudiu Jerônimo.

–Preferia um trago de vinho branco–contraveio o terceiro.

–Tudo o que quiserem!–franqueou aquele.–Eu tomo também um pouco de vinho. Não! que o que estamos a beber não é dinheiro de navalhista, foi ganho ao sol e à chuva com o suor do meu rosto! E entornar pra baixo sem caretas, que este não pesa na consciência de ninguém!

–Então, à sua!–brindou Zé Carlos, logo que veio o novo reforço.–Pra que não torne você a dar que fazer à má casta dos boticários !

–A sua, mestre Jerônimo!–concorreu o outro.

Jerônimo agradeceu e disse, depois de mandar encher os copos:

–Aos amigos e patrícios com quem me achei para o meu desforço!

E bebeu.

–A da Sora Piedade de Jesus!–exclamou o Pataca.

–Obrigado!–respondeu o cavouqueiro, erguendo-se.–Bem! Não nos deixe mos agora ficar aqui toda a noite; mãos à obra! São quase oito horas.

Os outros dois esvaziaram de um trago o que ainda havia no fundo dos copos e levantaram-se também.

–É muito cedo ainda…–obtemperou Zé Carlos, cuspindo de esguelha e lim pando o bigode nas costas da mão.

–Mas talvez tenhamos alguma demora pelo caminho–advertiu o companheiro indo buscar junto às pipas o embrulho dos cacetes.

–Em todo o caso vamos seguindo–resolveu Jerônimo, impaciente, nem se tivesse que a noite lhe fugisse de súbito.

Pagou a despesa e os três saíram, não cambaleando, mas como que empurrados por um vento forte, que os fazia de vez em quando dar para a frente alguns passos mais rápidos. Seguiram pela Rua de Sorocaba e tomaram depois a direção da praia, conversando em voz baixa, muito excitados. Só pararam perto do Garnisé.

–Vais tu então, não é?–perguntou o cavouqueiro ao Pataca.

Este respondeu entregando-lhe o embrulho dos paus e afastando-se de mãos nas algibeiras, a olhar para os pés, fingindo-se mais bêbedo do que realmente estava.

15

O Garnisé tinha bastante gente essa noite. Em volta de umas doze mesinhas toscas de pau, com uma coberta de folha-de-flandres pintada de branco fingindo mármore, viam se grupos de três e quatro homens, quase todos em mangas de camisa, fumando e bebendo no meio de grande algazarra. Fazia-se largo consumo de cerveja nacional, vinho virgem, parati e laranjinha. No chão coberto de areia havia cascas de queijo-de-minas, restos de iscas de fígado, espinhas de peixe, dando ideia de que ali não só se enxugava como também se comia. Com efeito, mais para dentro, num engordurado bufete, junto ao balcão e entre as prateleiras de garrafas cheias e arrolhadas, estava um travessão de assado com batatas, um osso de presunto e vários pratos de sardinhas fritas. Dois candeeiros de quero sene fumeavam, encarvoando o teto. E de uma Dorta ao fundo, que escondia o interior da casa com uma cortina de chita vermelha, vinha de vez em quando uma baforada de vozes roucas, que parecia morrer em caminho, vencida por aquela densa atmosfera cor de opala.

O Pataca estacou à entrada, afetando grande bebedeira e procurando, com disfarce, em todos os grupos, ver se descobria o Firmo. Não o conseguiu; mas alguém, em certa mesa, lhe chamara a atenção, porque ele se dirigiu para lá. Era uma mulatinha magra, malvestida, acompanhada por uma velha quase cega e mais um homem, inteiramente calvo, que sofria de asma e, de quando em quando, abalava a mesa com um frouxo de tosse, fazendo dançar os copos.

O Pataca bateu no ombro da rapariga.

–Como vais tu, Florinda?

Ela olhou para ele, rindo; disse que ia bem e perguntou-lhe como passava.

–Rola-se, filha. Tu que fim levaste? Há um par de quinze dias que te não vejo!

–É mesmo. Desde que estou com seu Bento não tenho saído quase.

–Ah!–disse o Pataca–estás amigada? Bom!…

–Sempre estive!

E ela então, muito expansiva com a sua folga daquele domingo e com o seu bocado de cerveja, contou que, no dia em que fugiu da estalagem, ficou na rua e dormiu numas obras de uma casa em construção na Travessa da Passagem e que no seguinte, oferecendo-se de porta em porta, para alugar-se de criada ou de ama- seca, encontrou um velho solteiro e agebadol que a tomou ao seu serviço e meteu-se com ela.

–Bom! muito bom!–anuiu Pataca.

Mas o diabo do velho era um safado; dava-lhe muita coisa, dinheiro até, trazia-a sempre limpa e de barriga cheia, sim senhor! mas queria que ela se prestasse a tudo! Brigaram. E, como o vendeiro da esquina estava sempre a chamá- la para casa, um belo dia arribou, levando o que apanhara ao velho.

–Estás então agora com o da venda?

Nã o! O tratante, a pretexto de que desconfiava dela com o Bento marceneiro, pô-la na rua, chamando a si o que a pobre de Cristo trouxera da casa do outro e deixando-a só com a roupa do corpo e ainda por cima doente por causa de um aborto que tivera logo que se metera com semelhante peste. O Bento tomara-a então à sua conta, e ela, graças a Deus, por enquanto não tinha razões de queixa.

O Pataca olhou em torno de si com o ar de quem procura alguém, e Florinda, supondo que se tratava do seu homem, acrescentou:

–Não está cá, está lá dentro. Ele, quando joga, não gosta que eu fique perto; diz que encabula.

–E tua mãe?

–Coitada! foi pro hospício…

E passou logo a falar a respeito da velha Marciana; o Pataca, porém, já lhe não prestava atenção, porque nesse momento acabava de abrir-se a cortina vermelha e Firmo surgiu muito ébrio, a dar bordosl, contando, sem conseguir, uma massagada de dinheiro, em notas pequenas, que ele afinal entrouxou num bolso e recolheu na algibeira das calças.

–O Porfiro! não vens?–gritou lá para dentro, arrastando a voz.

E, depois de esperar inutilmente pela resposta, fez alguns passos na sala.

O Pataca deu à Florinda um “até logo” rápido e, fingindo-se de novo muito bêbedo, encaminhou-se na direção em que vinha o mulato.

Esbarraram-se.

–Oh! Oh!–exclamou o Pataca.–Desculpe!

Firmo levantou a cabeça e encarou-o com arrogancia; mas desfranziu o rosto logo que o reconheceu.

–Ah! és tu, seu galego? Como vai isso? A ladroeira corre?

–Ladroeira tinha a avó na cuia! Anda a tomar alguma coisa. Queres?

–Que há de ser?

–Cerveja. Vai?

–Válá.

Chegaram-se para o balcão.

–Uma Guarda-Velha, ó pequeno!–gritou o Pataca.

Firmo puxou logo dinheiro para pagar.

–Deixa!–disse o outro.–A lembrança foi minha!

Mas, como Firmo insistisse, consentiu-lhe que fizesse a despesa.

E os níqueis do troco rolaram no chão, fugindo por entre os dedos do mulato, que os tinha duros na tensão muscular da sua embriaguez.

–Que horas são?–perguntou Pataca, olhando quase de olhos fechados o relógio da parede.–Oito e meia. Vamos a outra garrafa, mas agora pago eu!

Beberam de novo, e o coadjutor de Jerônimo observou depois:

–Você hoje ferrou-a deveras! Estás que te não podes lamber!

–Desgosto…–resmungou o capoeira, sem conseguir lançar da boca a saliva que se lhe grudava à língua.

–Limpa o queixo que estás cuspido. Desgosto de quê? Negócios de mulher, aposto!

–A Rita não me apareceu hoje, sabes? Não foi e eu bem calculo por quê!

–Por quê?

–Porque a peste do Jerônimo voltou hoje à estalagem!

–Ahn! não sabia!… A Rita está então com ele?…

–Não está, nem nunca há de estar, que eu daqui mesmo vou à procura daquele galego ordinário e ferro-lhe a sardinha no pandulho!

–Vieste armado?

Firmo sacou da camisa uma navalha.

–Esconde! não deves mostrar isso aqui! Aquela gente ali da outra mesa já não nos tira os olhos de cima!

–Estou-me ninando pra eles! E que não olhem muito, que lhes dou uma de amostra! –Entrou um urbano! Passa-me a navalha! O capadócio fitou o companheiro, estranhando o pedido. –É que–explicou aquele–se te prenderem não te encontram ferro… –Prender a quem? a mim? Ora, vai-te catar! –E ela é boa? Deixa ver! –Isto não é coisa que se deixe ver! –Bem sabes que não me entendo com armas de barbeiro! –Não sei! Esta é que não me sai das unhas, nem para meu pai, que a pedisse! –É porque não tens confiança em mim! –Confio nos meus dentes, e esses mesmos me mordem a língua! –Sabes quem vi ainda há pouco? Não és capaz de adivinhar!… –Quem? –A Rita. –Onde? –Aí na Praia da Saudade. –Com quem? –Com um tipo que não conheço… Firmo levantou-se de improviso e cambaleou para o lado da saída. –Espera!–rosnou o outro, detendo-o.–Se queres vou contigo; mas é preciso ir com jeito, porque, se ela nos bispal, foge! O mulato não fez caso dessa observação e saiu a esbarrar-se por todas as mesas. Pataca alcançou-o já na rua e passou-lhe o braço na cintura, amigavelmente. –Vamos devagar…–disse–senão o pássaro se arisca! A praia estava deserta. Caía um chuvisco. Ventos frios sopravam do mar. O céu era um fundo negro, de uma só tinta; do lado oposto da baía os lampiões pareciam surgir da água, como algas de fogo, mergulhando bem fundo as suas trêmulas raízes luminosas.

– Onde está ela? – perguntou o Firmo, sem se agüentar nas pernas.

–Ali mais adiante, perto da pedreira. Caminha, que hás de ver! E continuaram a andar para as bandas do hospício. Mas dois vultos surdiram da treva; o Pataca reconheceu-os e abraçou-se de improviso ao mulato.

– Segurem-lhe as pernas! – gritou para os outros. Os dois vultos, pondo o cacete entre os dentes, apoderaram-se de Firmo, que bracejava seguro pelo tronco. Deixara-se agarrar – estava perdido. Quando Pataca o viu preso pelos sovacos e pela dobra dos joelhos, sacou-lhe fora a navalha.

– Pronto! Está desarmado! E tomou também o seu pau.

Soltaram-no então. O capoeira, mal tocou com os pés em terra, desferiu um golpe com a cabeça, ao mesmo tempo que a primeira cacetada lhe abria a nuca. Deu um grito e voltou-se cambaleando. Uma nova paulada cantou-lhe nos ombros, e outra em seguida nos rins, e outra nas coxas, outra mais violenta quebrou-lhe a clavícula, enquanto outra logo lhe rachava a testa e outra lhe apanhava a espinha, e outras, cada vez mais rápidas, batiam de novo nos pontos já espancados, até que se converteram numa carga contínua de porretadas, a que o infeliz não resistiu, rolando no chão, a gotejar sangue de todo o corpo.

A chuva engrossava. Ele agora, assim debaixo daquele bate-bate sem tréguas, parecia muito menor, minguava como se estivesse ao fogo. Lembrava um rato morrendo a pau. Um ligeiro tremor convulsivo era apenas o que ainda lhe denunciava um resto de vida. Os outros três não diziam palavra, arfavam, a bater sempre, tomados de uma irresistível vertigem de pisar bem a cacete aquela trouxa de carne mole e ensangüentada, que grunhia frouxamente a seus pés. Afinal, quando de todo já não tinham forças para bater ainda, arrastaram a trouxa até a ribanceira da praia e lançaram-na ao mar. Depois, arquejantes, deitaram a fugir, a toda, para os lados da cidade.

Chovia agora muito forte. Só pararam no Catete, ao pé de um quiosque, estavam encharcados; pediram parati e beberam como quem bebe água. Passava já de onze horas. Desceram pela Praia da Lapa; ao chegarem debaixo de um lampião, Jerônimo parou suando, apesar do aguaceiro que caía.

– Aqui têm vocês – disse, tirando do bolso as quatro notas de vinte mil- réis. – Duas para cada um! E agora vamos tomar qualquer coisa quente em lugar seco.

– Ali há um botequim – indicou o Pataca, apontando a Rua da Glória.

Subiram por uma das escadinhas que ligam essa rua à praia, e daí a pouco instalavam-se em volta de uma mesa de ferro. Pediram de comer e de beber e puseram-se a conversar em voz soturna, muito cansados.

A uma hora da madrugada o dono do café pô-los fora. Felizmente chovia menos. Os três tomaram de novo a direção de Botafogo; em caminho Jerônimo perguntou ao Pataca se ainda tinha consigo a navalha do Firmo e pediu-lha, ao que o companheiro cedeu sem objeção.

– E para conservar uma lembrança daquele bisbórria!–explicou o cavouqueiro, guardando a arma.

(…)

Mas, no melhor da luta, ouvia-se na rua um coro de vozes que se aproximavam das bandas do Cabeça de Gato. Era o canto de guerra dos capoeiras do outro cortiço, que vinham dar batalha aos carapicus, para vingar com sangue a morte de Firmo, seu chefe de malta.

17

Mal os carapicus sentiram a aproximação dos rivais, um grito de alarma ecoou por toda a estalagem e o rolo dissolveu-se de improviso, sem que a desordem cessasse. Cada qual correu à casa, rapidamente, em busca do ferro, do pau e de tudo que servisse para resistir e para matar. Um só impulso os impelia a todos; já não havia ali brasileiros e portugueses, havia um só partido que ia ser atacado pelo partido contrário; os que se batiam ainda há pouco emprestavam armas uns aos outros, limpando com as costas das mãos o sangue das feridas. Agostinho, encostado ao lampião do meio do cortiço, cantava em altos berros uma coisa que lhe parecia responder à música bárbara que entoavam lá fora os inimigos; a mãe dera- lhe licença, a pedido dele, para pôr um cinto de Nenen, em que o pequeno enfiou a faca de cozinha. Um mulatinho franzino, que até aí não fora notado por ninguém no São Romão, postou-se defronte da entrada, de mãos limpas, à espera dos invasores; e todos tiveram confiança nele porque o ladrão, além de tudo, estava rindo.

Os cabeça de gato assomaram afinal ao portão. Uns cem homens, em que se não via a arma que traziam. Porfiro vinha na frente, a dançar, de braços abertos, bamboleando o corpo e dando rasteiras para que ninguém lhe estorvasse a entrada. Trazia o chapéu a ré, com um laço de fita amarela flutuando na copa.

–Agüenta! Agüenta! Faz frente! –clamavam de dentro os carapicus.

E os outros, cantando o seu hino de guerra, entraram e aproximaram-se lentamente, a dançar como selvagens.

As navalhas traziam-nas abertas e escondidas na palma da mão.

Os carapicus enchiam a metade do cortiço. Um silêncio arquejado sucedia a estre pitosa vozeria do rolo que findara. Sentia-se o hausto impaciente da ferocidade que atirava aqueles dois bandos de capoeiras um contra o outro. E, no entanto, o sol, único causador de tudo aquilo, desaparecia de todo nos limbos do horizonte, indiferente, deixando atras de si as melancolias do crepúsculo, que é a saudade da terra quando ele se ausenta, levando consigo a alegria da luz e do calor.

Lá na janela do Barão, o Botelho, entusiasmado como sempre por tudo que lhe cheirava a guerra, soltava gritos de aplauso e dava brados de comando militar.

E os cabeça de gato aproximavam-se cantando, a dançar, rastejando alguns de costas para o chão, firmados nos pulsos e nos calcanhares.

Dez carapicus saíram em frente; dez cabeça de gato se alinharam defronte deles.

E a batalha principiou, não mais desordenada e cega, porém com método, sob o comando de Porfiro que, sempre a cantar ou assobiar, saltava em todas as direções, sem nunca ser alcançado por ninguém.

Desferiram-se navalhas contra navalhas, jogaram-se as cabeçadas e os voa- pés. Par a par, todos os capoeiras tinham pela frente um adversário de igual destreza que respondia a cada investida com um salto de gato ou uma queda repentina que anulava o golpe. De parte a parte esperavam que o cansaço desequilibrasse as forças, abrindo furo à vitória; mas um fato veio neutralizar inda uma vez a campanha: imenso rebentão de fogo esgargalhava-se de uma das casas do fundo, o número 88. E agora o incêndio era a valer.

Houve nas duas maltas um súbito espasmo de terror. Abaixaram-se os ferros e calou-se o hino de morte. Um clarão tremendo ensangüentou o ar, que se fechou logo de fumaça fulva.

A Bruxa conseguira afinal realizar o seu sonho de louca: o cortiço ia arder, não haveria meio de reprimir aquele cruento devorar de labaredas. Os cabeça de gato, leais nas suas justas de partido, abandonaram o campo, sem voltar o rosto, desdenhosos de aceitar o auxílio de um sinistro e dispostos até a socorrer o inimigo, se assim fosse preciso. E nenhum dos carapicus os feriu pelas costas. A luta ficava para outra ocasião. E a cena transformou-se num relance; os mesmos que barateavam tão facilmente a vida apressavam-se agora a salvar os miseráveis bens que possuíam sobre a terra. Fechou-se um entra-e-sai de maribondos defronte daquelas cem casinhas ameaçadas pelo fogo. Homens e mulheres corriam de cá para lá com os tarecos ao ombro, numa balbúrdia de doidos. O pátio e a rua enchiam-se agora de camas velhas e colchões espocados. Ninguém se conhecia naquela zumba de gritos sem nexo, e choro de crianças esmagadas, e pragas arrancadas pela dor e pelo desespero. Da casa do Barão saíam clamores apopléticos; ouviam-se os guinchos de Zulmira que se espolinhava com um ataque. E começou a aparecer água. Quem a trouxe? Ninguém sabia dizê-lo; mas viam-se baldes e baldes que se despejavam sobre as chamas.

Os sinos da vizinhança começaram a badalar.

E tudo era um clamor.

A Bruxa surgiu à janela da sua casa, como à boca de uma fornalha acesa. Estava horrível; nunca fora tão bruxa. O seu moreno trigueiro, de cabocla velha, reluzia que nem metal em brasa; a sua crina preta, desgrenhada, esconida e abundante como as das éguas selvagens, dava-lhe um caráter fantástico de fúria saída do inferno. E ela ria-se, ébria de satisfação, sem sentir as queimaduras e as feridas, vitoriosa no meio daquela orgia de fogo, com que ultimamente vivia a sonhar em segredo a sua alma extravagante de maluca.

Ia atirar-se cá para fora quando se ouviu estalar o madeiramento da casa incendiada, que abateu rapidamente, sepultando a louca num montão de brasas.

Os sinos continuavam a badalar aflitos. Surgiam aguadeiros com as suas pipas em carroça, alvoroçados, fazendo cada qual maior empenho em chegar antes dos outros e apanhar os dez mil-réis da gratificação. A polícia defendia a passagem ao povo que queria entrar. A rua lá fora estava já atravancada com o despojo de quase toda a estalagem. E as labaredas iam galopando desembestadas para a direita e para a esquerda do número 88. Um papagaio, esquecido à parede de uma das casinhas e preso à gaiola, gritava furioso, como se pedisse socorro.

Dentro de meia hora o cortiço tinha de ficar em cinzas. Mas um fragor de repiques de campainhas e estridente silvar de válvulas encheu de súbito todo o quarteirão, anunciando que chegava o corpo de bombeiros.

E logo em seguida apontaram carros à desfilada, e um bando de demônios de blusa clara, armados uns de archotes e outros de escadinhas de ferro, apoderaram- se do sinistro, dominando-o incontinenti, como uma expedição mágica, sem uma palavra, sem hesitações e sem atropelos. A um só tempo viram-se fartas mangas de água chicoteando o fogo por todos os lados; enquanto, sem se saber como, homens, mais ágeis que macacos, escalavam os telhados abrasados por escadas que mal se distinguiam; e outros invadiam o coração vermelho do incêndio, a dardejar duchas em torno de si, rodando, saltando, piruetando, até estrangularem as chamas que se atiravam ferozes para cima deles, como dentro de um inferno; ao passo que outros, cá fora, imperturbáveis, com uma limpeza de máquina moderna, fuzilavam de água toda a estalagem, número por número, resolvidos a não deixar uma só telha enxuta.

O povo aplaudia-os entusiasmado, já esquecido do desastre e só atenção para aquele duelo contra o incêndio. Quando um bombeiro, de cima do telhado, conseguiu sufocar uma ninhada de labaredas, que surgia defronte dele, rebentou cá debaixo uma roda de palmas, e o herói voltou-se para a multidão, sorrindo e agradecendo.

Algumas mulheres atiravam-lhe beijos, entre brados de ovação.